Parece uma
vinícola. Tonéis mantidos sob temperatura e luminosidade rigorosamente
controladas guardam pelo tempo necessário uma preciosa mistura, que passa pelo
processo de fermentação e, mais tarde, purificação. O resultado é um líquido
prontamente engarrafado e rotulado. O destino, porém, não são as prateleiras de
lojas e supermercados, mas drogarias e hospitais. Os recipientes que saem
dessas fábricas contêm as chamadas drogas biológicas, classe de medicamentos
que promete revolucionar o tratamento de doenças como o câncer e males
inflamatórios e neurológico.
Esses remédios são, na verdade, proteínas humanas que
interferem na evolução das enfermidades. Recebem a denominação “biológicos”
porque são produzidos a partir de organismos vivos – sozinhos, os cientistas
não são capazes de fabricá-los. Depois de isolar uma dessas proteínas, eles a
inserem em células, formando matrizes. A partir daí, colocam algumas dessas
células modificadas em compostos de glicose e aminoácidos para que elas se
multipliquem e, assim, produzam em larga escala a substância desejada .
Apesar de serem constantemente chamados de remédios do
futuro, devido aos avanços que ainda podem promover, esses medicamentos já
estão no mercado. Na última década, a indústria dos biofármacos tem apresentado
avanços significativos. A cada dia, os cientistas descobrem proteínas
específicas que ajudam a tratar diversos males. E, melhor, depois de
identificá-las, passam a fabricá-las.
Uma das áreas beneficiadas é a do tratamento das artrites
inflamatórias, doenças do tecido conjuntivo que provocam a inflamação das
articulações – a artrite reumatoide é a mais comum. Segundo o médico Antonio
Carlos Ximenes, presidente da Liga de Associações de Reumatologia das Américas,
algumas drogas recentemente criadas são proteínas que agem especificamente
sobre substâncias chamadas citocinas, liberadas pelas células inflamadas. “Elas
ainda não representam a cura, mas bloqueiam a inflamação, amenizando sintomas”,
explica Ximenes. Segundo ele, esses remédios beneficiam entre 20% e 30% dos
pacientes que não respondem bem aos tratamentos convencionais.
Anticorpos
Grandes vitórias são observadas também na luta contra o
câncer. “A oncologia é, sem dúvida, uma das áreas mais beneficiadas pelos
medicamentos biológicos”, avalia Fermin Ruiz de Erenchun, gerente-geral do
laboratório Roche no Peru. Nos últimos 10 anos, cerca de 50 biofármacos para
combater o câncer foram desenvolvidos. As estrelas desses novos tratamentos são
os chamados anticorpos monoclonais, conhecidos como “balas mágicas”. O apelido
se deve à capacidade de essas drogas atacarem diretamente as células
cancerosas, preservando as saudáveis, uma vez que, ao entrarem na corrente
sanguínea, são capturadas pelo tumor. Por isso, os cientistas estão se
especializando em descobrir substâncias que agem sobre cada tipo de câncer para
realizar um ataque mais preciso a cada doença.
É o caso do trastuzumab, anticorpo monoclonal que
bloqueia a ação da proteína HER2, responsável pelo crescimento das células de
câncer de mama em cerca de 20% das pacientes. Nas mulheres cujos tumores
apresentam a proteína, o uso do medicamento, aliado ao tratamento tradicional,
levou a uma redução de 34% dos casos de morte, segundo estudo publicado na
revista especializada The Lancet. Outro exemplo é a droga Cima Vax-EGE,
desenvolvida em Cuba e atualmente em fase de testes em diferentes países,
incluindo o Brasil. O medicamento consegue prolongar a expectativa de vida de
pacientes com câncer de pulmão em estágio avançado.
Para a chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco
Embrionárias da Universidade de São Paulo (USP), Lygia da Veiga Pereira, esses
medicamentos trazem uma perspectiva “fascinante”. “A tendência é de que
tenhamos produtos cada vez mais inteligentes e capazes de realizar ataques
diretamente nos tumores”, prevê. Em outras palavras, o desenvolvimento dessas
drogas pode significar, no futuro, tratamentos menos agressivos, sem os
tradicionais efeitos colaterais, como a queda de cabelo e o mal-estar.
Personalizados
Uma das características de muitos desses remédios é que
eles não funcionam para todos os pacientes com diagnóstico semelhante. O
trastuzumab, por exemplo, só é eficaz nas mulheres cujas células expressam a
proteína HER2. O mesmo ocorre nos tratamentos voltados às doenças inflamatórias.
Para ser tratada com determinado medicamento, a pessoa precisa liberar a
citocina específica sobre a qual aquela proteína atua.
O que pode parecer uma falha é encarado pelos
especialistas como a chance de desenvolver tratamentos personalizados e mais eficientes.
Grosso modo, é como se a medicina saísse da era de remédios receitados para um
grande número de pacientes, mas com uma porcentagem apenas razoável de cura,
para produtos complexos, desenhados para cada caso e, portanto, mais
eficientes. “Drogas para todos os cânceres são uma coisa do passado. Nosso foco
é a medicina voltada para cada paciente”, decreta Fermin Erenchun.
Dessa forma, uma das preocupações da indústria
farmacêutica hoje é encontrar marcadores genéticos, presentes em alguns grupos
de pessoas, que indicam o caminho pelo qual os cientistas podem seguir para
desenvolver uma nova droga. Pode ser alteração em algum gene ou a produção de
uma substância específica que pode ser combatida com certa proteína. “Hoje,
buscamos primeiro o marcador para, a partir daí, desenvolvermos o medicamento”,
esclarece o executivo.
Ele afirma que a personalização dos tratamentos deve
combater ainda outro problema grave: as reações adversas a medicamentos. Um
estudo publicado pelo Journal of the American Medical Association em 2008
estimou que, a cada ano, ocorrem 100 mil mortes no mundo devido a efeitos
nocivos de medicamentos mal administrados.
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